A forma como gerimos os nossos pertences tem um forte paralelismo com a forma com que estamos nas relações e vice-versa. A maneira como lidamos com os nossos objetos internos, tem impacto na maneira como gerimos o nosso entorno (e menciono entorno em vez de “realidade” porque senão tínhamos "pano para mangas").
HIERARQUIA VERTICAL VERSUS HIERARQUIA HORIZONTAL A sociedade humana funciona numa hierarquia vertical, isto é, o exercício de funções e papéis são remetidos para posições diferenciadas de poder, o que significa que a vivência de papéis sociais, familiares, políticos, profissionais, etc. são dispostos em termos de superioridade em vez de equidade. O que é natural visto que, etimologicamente falando, a nossa espécie sempre se organizou para sobreviver em torno de um líder (supostamente o mais forte e experiente). A conquista de uma sociedade e cultura de hierarquia horizontal (nota: este termo entra um pouco em contra-senso visto que hierarquia significa "colocar por ordem de importância". Porém, neste caso refere-se à ordem de ações, de diferentes importâncias, que permitem que a sociedade, ou seja, a sobrevivência/vivência de um grupo, seja funcional) em que as funções e papéis realizados pelos seus diferentes membros implicam responsabilidade e importância igual no exercício do seu poder, dentro do seu tamanho, como querem fazer nas comunidades hippies, torna-se algo utópico, mas não impossível, pois tal exigiria um amadurecimento emocional e cognitivo precoce. O que por sua vez, significaria um saudável e acelerado desenvolvimento da nossa relação com objetos internos e externos. Existe também a questão de que, sendo cada um de nós único e singular, com necessidades próprias, a igualdade não será tão adaptativa quanto a equidade (na minha humilde opinião), o que me faz acreditar que esse é o motivo pelo qual, as políticas comunistas se tornam ditaduras. E não, isto não é uma opinião política, mas uma opinião com base na antropologia. RELAÇÃO CONNOSCO MESMOS E COM O CONQUISTADO Segundo a filosofia da Leitura Corporal (LC) que “descreve as funções emocionais dos segmentos e das estruturas corporais e estuda as associações que existem entre as manifestações do corpo físico e os processos psíquicos e sensoriais do Ser Humano.” (Leitura Corporal, 2020), os indivíduos ainda têm um problema em relação à distribuição das suas conquistas, pois tendem maioritariamente a “entregar” no sentido de desistir daquilo que se possui, normalmente por considerar que o outro será mais importante ou terá mais direito do que ele. Ou por oposição, conquistar e reter para si com medo da não existência de troca justa e, inconscientemente, num ato de sobrevivência e de preencher "vazios". Continuando o pensamento da LC, só poderá haver uma distribuição adequada de bens conquistados (energia, bens materiais, conhecimentos, tempo) a partir do sentimento de saciedade e gratidão, o que significa autopriorização, ou seja, preencher a minha “taça”, cuidar de mim, dar a mim aquilo que procuro no outro (no fundo aquilo que projeto, crio expectativa, etc.), para depois viver com o outro a soma que ele me traz, sem amputações, sem cedências em troca de vazios. Só depois de saciada eu posso finalmente distribuir aquilo que me alimenta, seja físico, psicológico, etc. Claro que o facto de vivermos numa sociedade vertical tem implicações na forma como tendemos a viver as nossas relações, porque replicamos do social para o pessoal. Mais uma vez saliento que isto não é uma questão política, mas antropológica. CONTABILIDADE AFECTIVA Quando se dá uma "entrega", ou seja, desisto do meu alimento, do meu autocuidado para atender e colocar em primeiro lugar o outro, o que na realidade é uma forma equivocada ou ilusória de procura de amor/plenitude de si mesmo (amor é o que está dentro de nós, não temos de procurar fora, nem tem de estar no outro. O que queremos e sentimos necessidade é de praticar a amorosidade, que é a troca recíproca de amor. Manifestar afectividade.), suscitam-se vazios e gera-se a contabilidade afectiva, ou seja, a cobrança de retornos. “Eu fiz por ti, agora tens de fazer por mim!” é a típica frase que revela essa contabilidade e demonstra ainda uma certa dificuldade no que se refere ao amadurecimento emocional. Um exemplo de frase que representa afinidade com respeito seria "Apetece-me fazer isto! Queres fazer isto comigo?" Aqui surge um convite para a soma em que um acresce algo com o outro. Quando eu usufruo, dando-me o direito de sentir prazer de estar comigo, do que conquisto, do que é meu, e a ninguém atender quando a vontade é simplesmente de usufruir, isto é, saciar-me, protejo-me da carência de respostas e da frustração na possibilidade de não ter as respostas esperadas. O que não implica que não precise do outro para ampliar esse mesmo prazer, para identificar quem eu sou (ou pelo menos quem em parte sou ou represento no mundo) e para me conhecer. Assim desenvolvo a minha humanidade, a capacidade de criar afinidade com respeito e a harmonização da minha relação com o outro. É no entendimento da relação comigo que consigo o entendimento da relação com o outro, e até o entendimento da relação com as várias formas de vida. Mais fácil falar que fazer, não é verdade? ;)
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Isabel Quinta FariaPsicóloga Clínica e da Saúde Categorias |